Arte: "Pajeú, O Temido Chefe Guerrilheiro" - Técnica mista sobre papel de Tripoli Gaudenzi Ilustra a capa do Livro de Luitgarde Barros, "A Derradeira Gesta - Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão".
Antropóloga e professora da Uerj, Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros é pessoa de fino trato e sem meias palavras. Simpática e educada, não tergiversa quando é pra defender suas posições e princípios. Envolveu-se com o tema do cangaço por razões pessoais - em 1927, antes de seu nascimento, sua mãe foi feita refém do grupo do cangaceiro Lampião no município de Santana do Ipanema (AL) - ela levanta dados em sua pesquisa que negam a versão até hoje cultivada em universidades brasileiras. No seu livro “A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão” (editora Mauad - 2000), que recebeu uma indicação para o prêmio Jabuti, Luitgarde reúne todos os detalhes para desmistificar Lampião. Nega, portanto, que o assassinato do pai de Lampião, José Ferreira, em 1921, pelas mãos do coronel (então tenente) Lucena, teria sido o motivo que conduziu Virgulino ao cangaço. Encontramo-nos em Fortaleza (CE), num Seminário do Cangaço, na Unifor. Depois, por correio eletrônico, fizemos esta entrevista.
Kydelmyr Dantas
O Mossoroense - Professora, como vosmecê, permita-me tratá-la assim, contesta a entrada de Lampião no cangaço?
Luitgarde Barros - Apoiada na literatura antropológica sobre o cangaço, em acervos de documentos e entrevistas, constatamos que Lampião era membro de uma família de pequenos proprietários e que entrou na vida do crime ainda na adolescência. O cangaço do século XX não é de origem pobre, mas nasce de proprietários remediados, comerciantes e donos de tropas de cavalos e burros. O próprio Virgolino Ferreira, antes de tornar-se Lampião, possuía terras e animais. Mas ainda jovem, em 1916, começou a agir como cangaceiro, sendo cabra dos Porcino, os irmãos Pedro, Antonio e Manuel Porcino, uma família que agia em Alagoas, sendo perseguida no sertão, por seus ataques nas estradas, principalmente nos dias de feira.
OM - Em "A Derradeira Gest" vosmecê apresenta detalhes para desmistificar Lampião. Como vem a ser isto?
LB - Tenho documentos de cartório mostrando a perseguição de Lampião quando ele ainda era membro do grupo dos Porcino. Virgolino Ferreira vivia uma vida dupla, antes de se entregar definitivamente ao cangaço, em 1922. Em Pernambuco, ele era um proprietário, com sua tropa de burro, e fazia comércio com a vizinhança. Mas como era exímio cavaleiro, percorria as regiões próximas e chegava em Sergipe e na Bahia como almocreve. Em Alagoas praticava crimes. Aí Virgolino dava lugar ao cangaceiro. Sua metamorfose se dava no interior dos municípios de Santana do Ipanema e Mata Grande.
OM – Então, é baseado nesta vida dupla que se pode dizer do real motivo das várias mudanças dos Ferreira, desde Pernambuco até Alagoas, e a conseqüente morte do patriarca José Ferreira?
LB - Eu não diria que José Ferreira foi o patriarca dos Ferreira, porque ele perdeu totalmente a autoridade sobre os filhos, ficando a reboque de suas decisões. Essa série de crimes em que Lampião se envolve, como invasões a cidades e troca de tiros, é o caminho que conduz seu pai à morte. Em 1921, Lampião vai com os Matilde para um lugarejo em Alagoas chamado Pariconha e lá eles matam um rapaz cego de 15 anos e promovem uma série de roubos. Depois, escondem o produto do saque em uma pequena fazenda próxima onde o pai dele estava vivendo, o que atrai o tenente Lucena ao local, já que desde o tempo dos Porcino esse policial vivia nas caatingas do sertão de Alagoas perseguindo cangaceiro. Como entrou atirando, esperando surpreender Lampião, Lucena acabou matando José Ferreira, um homem pacífico que, segundo a tradição oral daquela região, estava debulhando uma espiga de milho, não estando sequer armado. Como um filho expõe um pai dessa maneira?
OM - Mas, analisando os autores da bibliografia cangaceira, pelo menos 90% não creditam a entrada de Lampião no cangaço pra vingar a morte do pai?
LB - Lampião apelou para o código sertanejo de vingança para justificar suas ações. Essa legitimação dos próprios atos utilizando elementos da cultura sertaneja, como valentia e obrigação de vingança, para limpar manchas desonrosas ou corrigir injustiças, foi amplamente utilizada por todos os cangaceiros, principalmente Lampião. O atestado de óbito de José Ferreira se encontra no Cartório de Água Branca, sertão de Alagoas. Por que só Billy James Chandler e eu fomos até lá ler a documentação? Estão lá as descrições sobre os Porcino (sobrenome - Lacerda).
OM - Mesmo se levarmos em consideração que Virgolino não matou nenhum dos seus principais inimigos: Zé Saturnino e Zé Lucena. Desde quando Lampião começa a se envolver com os coronéis?
LB - A partir de 1922, já com seu próprio bando, ele passa a se envolver com os coronéis em sua atividade pelo sertão. Os grandes protetores dele são desembargadores, juízes de direito e altos industriais. Além da corrupção nas forças legais: Quando um destacamento policial ia perseguir os cangaceiros, eles eram avisados por membros corruptos. Por isto os Nazarenos exigiram do governador de Pernambuco, quando criaram suas próprias volantes, que só eles escolheriam seus companheiros de campanha, denunciando traições praticadas contra policiais que não pertenciam à indústria do cangaço.
OM - Lendo sua obra vemos o registro de nomes de juízes e políticos que recebiam o cangaceiro em suas residências e o apoiavam para que suas terras fossem poupadas. Por exemplo, o então interventor do estado de Sergipe, Eronildes de Carvalho. Certo?
LB - Eronildes chegou a lhe fornecer armas. Existem entrevistas em que Eronildes afirma ter dado uma pistola para ele, negando ter lhe vendido armamentos. Ele foi o principal protetor de Lampião. Veja meu livro, páginas 184 a 187.
OM - Como esta relação de "amizade" entre Virgulino Ferreira e os grandes proprietários de terra é explicada?
LB - Era um jogo de interesses. O esquema fazia com que Lampião atacasse apenas os adversários de seus padrinhos. Depois os grandes proprietários compravam por quase nada as terras dos concorrentes arrasadas por ele. Assim, eles refazem o latifúndio do Nordeste. Muitas viúvas entregaram suas terras, depois do ataque que matou seus maridos, pelo dinheiro da passagem e fugiram para São Paulo, salvando os filhos.
OM - Mas, esse sistema de favores beneficiava apenas Lampião?
LB - Não só a ele. Alimentava a "indústria do cangaço". Ele assaltava os pequenos e médios proprietários e esse dinheiro era usado para comprar armas, munição e polícia corrupta. Mas quem poderia vender armamento para ele sem ser punido? Só pessoas muito importantes tinham o monopólio do comércio com o cangaço. E como Lampião não poderia regatear preço com o poderoso, já que só este lhe poderia vender armas, era obrigado a continuar a vida de crimes para pagar os altos preços cobrados. Suas requisições de dinheiro a cidades ou pessoas cresceram tanto, que o montante roubado do trabalho dos sertanejos, num ano, correspondia aos gastos da Intendência (atual Prefeitura) do Rio de Janeiro, Capital da República, com saúde e educação.
OM - E estas 'verbas', para a 'indústria do cangaço' provinham de onde?
LB - Alimentada pelo governo federal, essa "indústria" do banditismo chega ao fim em 1938, por questões econômicas. Naquele ano, o presidente do recém-criado Instituto do Açúcar e do Álcool, o pernambucano Barbosa Lima Sobrinho, informa aos governadores de Alagoas e Pernambuco que a verba para o subsídio da produção açucareira, que já vinha sendo dada aos usineiros sulistas desde 1917, no Nordeste vinha sendo destinada ao combate ao cangaço e ao nunca pago ressarcimento das vítimas. E que isso teria de acabar! Depois dessa notícia, o governador de Alagoas, Osman Loureiro, incumbe o coronel Lucena de comandar o extermínio do bando de Lampião em um período de um mês. Lucena convocou seus homens e afirmou que se eles não cumprissem a tarefa no prazo seriam demitidos, respondendo Lei Marcial. Em 30 dias acabou o cangaço, com o massacre contra o grupo do cangaceiro ocorrido em julho de 1938, na Grota de Angico, Sergipe.
OM - Se analisarmos mais profundamente, a maioria das obras sobre o cangaço de Lampião persistem num erro histórico?
LB - Há necessidade de se corrigir este erro. Ao contrário do que se acredita, no período de Lampião as populações pobres são as mais atingidas por seus atos, enquanto as classes que o protegiam ficavam cada vez mais ricas. Esses fatos ficaram obscuros porque quando se cria um mito a primeira coisa que a imprensa faz é esconder a verdade sobre sua vida.
OM - Em nome da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço - SBEC, com sede em Mossoró, da qual vosmecê nos honra em tê-la como sócia efetiva, fique à vontade para as considerações finais...
LB - Analisando a realidade do mundo contemporâneo ressalta a permanência da miséria que avilta e joga seres humanos sem perspectiva de vida social digna nos planos assassinos dos que vivem do sangue, do trabalho e da morte dos filhos de Deus! Se o Padre Mestre Ibiapina, o maior de todos os nordestinos nascidos no sertão, estivesse hoje redivivo, tornaria a bradar aos homens de bem deste país: NÃO HÁ JUSTIÇA ENTRE OS HOMENS!