SBEC - Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

As Charqueadas do Ceará

Juliana Pereira Ischiara
Secagem do Charque
As charqueadas ou simplesmente oficinas donde se produzia o charque ou carne de sol, já fora uma importante economia de mercado para o Ceará. Mesmo sendo esta iguaria apreciada em todo o Brasil, pode-se afirmar que teve sua origem no Ceará, sendo a carne de charque uma comida genuinamente nordestina.
Não há como negar que vem do vaqueiro a nossa natureza nômade, o nosso jeito de viver um certo individualismo sem peia, a nossa vocação para o ócio criativo e ,enfim, para a imaginação sem limites. Numa visão romanceada o vaqueiro é também cantador e galanteador de moças acocoradas à beira de estradas ou açudes à espera de seu vaqueiro encantado, com um brilho nos olhos, de vestido de chita, sonhando com um noivo valente e robusto, tangedor de um enorme rebanho de gado, aboiando sertão adentro, cantarolando poemas românticos ou cantigas apaixonadas. Mas o vaqueiro também pode ser cangaceiro, que lava com o sangue da vingança qualquer mal que seja feito a qualquer ente querido. São tantos personagens ricos em detalhes em uma complexidade de fatos, que se pensarmos com minúcia acabamos por produzir uma colcha de retalhos de lendas e acontecimentos, que nos faz ficar cada vez mais apaixonados por este universo rural.
A colonização do Nordeste deve-se ao tangedor e é exatamente neste momento que se funde caatinga, homem e cultura. O sertão é mítico e há todo um aparato em torno do seu cotidiano, como modos de vida, cultura, crendices e religiosidade. Foi no ciclo do couro que se criou a figura emblemática ou herói encourado, que mesmo tendo uma vida difícil consegue dar boas risadas sobre seu cotidiano, não se deixando abater por pouca coisa, sendo um apaixonado pela profissão escolhida ou simplesmente herdada, como ele mesmo gosta de denominá-la.
A beleza rústica fazendo nuanças com sua poesia desprovida de rimas rebuscadas, já que em seu meio não há letrados, mas contadores de histórias, passadas de pai para filho, desde os pródromos de sua geração. O cearense é filho da caatinga, descendente de índios bárbaros, criado a solta neste marzão do semi-árido. Seu umbigo está no sertão. No sertão de mandacarus.
A ocupação do sertão cearense se deu com o gado trazido das capitanias vizinhas, principalmente Pernambuco e Rio Grande do Norte. Esta colonização ou ocupação teve seu início nos vales do rio Jaguaribe e Acaraú, sendo estes os pontos essenciais para o processo de ocupação.
Com o crescimento das fazendas a produção bovina tomava seu apogeu. Mas dada à escassa população de baixo poder aquisitivo, a produção de carne excedia a necessidade do mercado local. Assim sendo, não era justificável para a acanhada economia do Ceará que centenas de reses fossem mortas apenas para o aproveitamento do couro, produto de destaque da colônia. Além do mais, havia necessidade de carne, tanto nos engenhos da zona da mata como nas demais concentrações populacionais.
O problema, de início, foi solucionado com a comercialização do gado em pé nas feiras pernambucanas, de Olinda, Igaraçu e Goiana, assim como na região do Recôncavo Baiano.
Deve ser salientado que, mesmo para Pernambuco, o negócio não era compensador, uma vez que o gado emagrecia diante de tantos dias de longas caminhadas, debilitando-se a ponto de não ter condições físicas para o abate. A impossibilidade de concorrer comercialmente com o rebanho oriundo dos sertões da Capitania e de suas vizinhas faz com que os fazendeiros das áreas litorâneas, já a partir da primeira metade do século XVII, passem a exportar seu gado abatido transformado em carne seca salgada e sem couro.
Surgiram, assim, no Ceará, as fábricas de beneficiar carne, as chamadas Oficinas, Charqueadas ou Feitorias, instaladas nos estuários dos rios Jaguaribe, Acaraú e Coreaú, estendendo-se depois ao Parnaíba, Piauí e ao Açu, no Rio Grande do Norte. As condições geofísicas do litoral pastoril do Ceará favoreceram o surgimento daquela indústria,
“ que além de matéria-prima abundante, possuía outros fatores locais asseguradores de êxito: ventos constantes e baixa umidade relativa do ar, favoráveis à secagem e duração do produto, existência de sal, cuja importância se não precisa destacar, barras acessíveis à cabotagem da época.” (GIRÃO, 1984)
As povoações de Aracati, Granja, Camocim e Acaraú, possuíam as condições exigidas. Ali em toscas oficinas passou a ser fabricado um tipo de carne seca, prensada, moderadamente salgada e desidratada ao sol e ao vento, por tempo necessário à sua conservação.
As oficinas instaladas nas embocaduras dos rios permitindo um embarque direto do produto das fábricas aos mercados, favoreceram o desenvolvimento das feitorias, que segundo informações extraídas da Segunda Audiência da câmara da Vila Aracati, data de 19 de fevereiro de 1781, as tais oficinas
“ herão huas cazas, ou edifícios insignificantes em forma de telheiro formados de paus e telhas vãa que em pouco tempo se podem mudar e construir de novo com os mesmos paus e telhas no lugar que está destinado, que he o mais conveniente para as mesmas oficinas, e mais perto do Porto dos Barros”. (GIRÃO, 1984)

Segundo o historiador Geraldo Nobre
“ o tal telheiro seria o centro das atividades da oficina, tanto servindo as pessoas que preparavam as carnes secas como para sobre eles ficarem expostas ao sol as postas dos animais abatidos, tal qual nos varais, ou paus apoiados, em fileiras a maior parte da área do estabelecimento, cabendo a restante ao curral e, em alguns casos, aos estaleiros”.
As reses transformadas em dois tipos de carnes, logo chegaram aos mercados consumidores (não mais com seu próprios pés), mas por via marítima, levadas em sumacas, embarcações estas com capacidade de carregamento de “aproximadamente a produção de duas mil reses, ou seja, no mínimo 80.000 quilos de carnes secas...“
A documentação existente não indica o nome do idealizador da técnica, ou seja, um anônimo teve a idéia genial de industrializar carne desses rebanhos costeiros. Também não é conhecido o ano de instalação das primeiras salgadeiras na Capitania do Siará Grande.
Os documentos são claros quanto ao fabrico dos charques e a comercialização da carne-seca da região jaguaribana para outros centros, já na segunda década do século XVIII e surgiram primeiramente no pequeno arraial de São José do Porto dos Barros, depois elevada à categoria de vila com nome de Santa Cruz do Aracati, hoje cidade do Aracati.
As boiadas que antes se deslocavam para as feiras pernambucanas e baianas começavam a rumar em direção à foz de suas próprias ribeiras. Este movimento revolucionou a feição econômica, social e política da Capitania.
O litoral e o sertão interpenetraram comercialmente e os laços administrativos entre as duas zonas tornaram-se mais significativos. Os mais longínquos núcleos sertanejos nutriam-se com as utilidades de outros centros, remetendo em troca os produtos de terra.
Com as charqueadas ganhava a Capitania subalterna de Pernambuco maior importância no contexto regional, enquadrando-se no sentido da economia colonialista da época, isto é, não com a carne mas com o couro destinado à exportação.
O desenvolvimento da chamada carne-do-Ceará possibilitou ainda o surgimento de núcleos urbanos e com eles o início de um mercado interno, praticamente inexistente até então.
A pecuária colonizadora do sertão veio mesmo com o intuito de servir ao canavial e acabou por induzir outra atividade, já que a mesma se expandia com muita velocidade no litoral, provocando o deslocamento do gado para o sertão. A viabilidade deu-se mesmo por fatores primordiais como a disponibilidade de terras, a adaptação do gado à caatinga, a salinização do solo e a abundância de pastagens. Além do mais, o gado atendia às necessidades do mercado interno mostrando-se muito lucrativo, principalmente no litoral canavieiro, suprindo com carne, couro e animais para tração e transporte. Já nas fazendas o gado era de suma importância para a subsistência, fornecendo leite e carne e couro, era usado no fabrico de móveis, calçados, dentre outras coisas que os permitia viver no isolamento do sertão. Como disse Capistrano de Abreu “ nasceu assim a verdadeira civilização do couro”.
A manutenção era muito fácil, pois bastava construir currais, manter alguns trabalhadores livres e também escravos que não eram muito utilizados, já que os fazendeiros tinham os índios como auxiliares mesmo sendo submetidos.
Mas foi mesmo o vaqueiro o principal artifício da atividade criatória no sertão, já que o proprietário pouco ficava em suas fazendas, precisando assim de alguém de sua inteira confiança para dirigir os negócios. Mesmo não sendo fácil cuidar de muitas reses, um só daria conta e seu pagamento era uma parte da criação, como por exemplo, de cada quatro bezerros nascidos, um era dele que podia ser criado junto com os demais. Vendo a possibilidade de se tornar um futuro criador e até fazendeiro, o vaqueiro empenhava-se muito mais, fazendo os negócios progredirem a passos largos.
Sem dispor de muitas terras nas áreas litorâneas onde se plantavam canaviais, os donos de engenhos de açúcar que também precisavam do gado para tração nos engenhos e para o alimento dos serviçais, optaram por empurrá-lo sertão adentro, e foi este o caminho para a colonização dos grandes sertões nordestinos.
A partir do século XIX, após várias estiagens e, sobretudo com a expansão da produção algodoeira de exportação, a pecuária passou a declinar em importância econômica. No entanto, o imaginário e a criação artístico-cultural popular faz, refaz e mantém viva a relevância histórica do boi e do vaqueiro, contribuindo, com arte e informação, para a compreensão da realidade cearense.

Referências Bibliográficas

GIRÃO, Valdelice Carneiro. Oficinas ou Charqueadas no Ceará,
Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto. 1984
MENEZES, Djaci. O Outro Nordeste. Rio de Janeiro: José Olympio.
1937
SOUSA, Simone de ( Org. ) Uma Nova História do Ceará. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2000.
Arte: "Armazém de Charque" - Debret

Um comentário:

Renato M de Abrantes disse...

De extrema lucidez histórica e clareza redacional, o artigo de Juliana Pereira Ischiara traz à baila a função libertária do "vaqueiro" no interior nordestino.

Onde quer que "o encouraçado" estivesse, a escravidão negra era relegada a um segundo plano, tendo em vista as vantagens para os fazendeiros em manter homens livres cuidando do seu rebanho. O vaqueiro cuidava do gado do seu patrão como se fosse próprio. Saberia que, dali, teria sua porção. O escravo negro, subjugado pelo chicote do capataz, com toda razão pouco se importava com o seu trabalho e com o produto do seu trabalho, sabedor que dali nada receberia em troca.

Na minha Paraíba, muito particularmente no interior, tal fato é evidentíssimo, se comparado com o que aconteceu na zona litorânea, produtora de cana-de-açúcar, na qual o negro era mão de obra mais rentável.

O vaqueiro, herói popular destas plagas sertanejas, deve ser considerado, sim, agente de libertação social.

Parabéns pelo artigo, Juliana.

Renato Moreira de Abrantes
Quixadá-Ceará

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