SBEC - Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

As Muitas Versões do Cangaço

Juliana Pereira Ischiara (*)
Caros pesquisadores do Cangaço, não é minha intenção polemizar, mesmo em se tratando de cangaço, terreno bastante fértil para debates, controvérsias e discordâncias, porém, todos nós devemos ter em mente que não existem verdades absolutas, mas, simplesmente verdades. O que é uma verdade para mim, pode não ser para o outro e assim sucessivamente, pois, em se tratando de história como ciência, podemos falar de verdades históricas, ou seja, a verdade dos vencedores, dos vencidos e daqueles que tiram suas conclusões tendo como base as duas primeiras elencadas.
A história não é uma ciência exata, não podemos sair por aí argüindo nossos pensamentos como se fosse uma idéia absoluta do objeto pesquisado.
Esta semana que passou lemos em alguns blogs e no Jornal da Cidade de Sergipe, um excelente debate entre dois grandes pesquisadores do cangaço. De um lado o acadêmico Frederico Pernambucano de Melo, autor de vários trabalhos importantes sobre a temática em tela e, do outro lado, o sergipano Alcino Alves da Costa, um exímio conhecedor do fenômeno cangaço, em particular os seus dez últimos anos tendo Lampião como líder.
Alcino é de Poço Redondo, um irmão de sua mãe foi cangaceiro, além de ter crescido em meio à história viva do cangaço, pois se em Poço Redondo, ainda nos dias de hoje, o cangaço é assunto comum nas rodas de conversa, imagine na meninice e ao longo de sua vida, com um tio cangaceiro, o sogro sendo o velho “China do Poço” amigo de Lampião. Alcino também é autor de vários livros sobre o cangaço.
Se por um lado, um pesquisador tem como esteio de suas pesquisas o aparato acadêmico, tendo inclusive conversado como alguns sobreviventes, do outro lado temos um pesquisador que nasceu, cresceu e passou sua vida em meio a sobreviventes do cangaço como ex-cangaceiros, outros jurados de morte por cangaceiros, coiteiros e amigos de Lampião. Com isso, não estou medindo a competência dos pesquisadores, nem mesmo aceitando um pensamento em detrimento de outro, pois cabe a mim, assim como aos demais, aprender com estes dois mestres da historiografia cangaceira a arte do bom debate. Tanto um quanto outro são autoridades no assunto.
O bom do debate é perceber as diferentes versões acerca do mesmo objeto. Ao analisar as duas ou mais vertentes, individualmente tiramos nossas próprias conclusões.
Um exemplo disso é que, mesmo respeitando o trabalho e os anos de pesquisa de Frederico Pernambucano de Melo, não concordo quando ele disse
“... que a valentia e a capacidade de urdir planos vinham na cabeceira dessa criteriologia de ascensão hierárquica no bando, da qual passou a fazer parte, de início timidamente, e depois como concausa cada vez mais relevante, especialmente no meado dos anos 30, a habilidade com as agulhas e as linhas, assim como o domínio da máquina Singer de mesa”.
Penso que ter habilidade em contornar situações delicadas e difíceis, capacidade de estratégia, facilidade em comandar adversidades comuns em um grupo de seres pensantes, dada a particularidade de cada um, ter pulso forte diante de eventuais divergências, fossem os critérios para ascensão hierárquica dentro do bando e não o manuseio da máquina de costura, mesmo porque, viviam e sobreviviam em meio a combates, no liame entre a vida e a morte. Sendo assim, não creio que ter habilidade na arte de bordar e costurar fosse de suma importância para o chefe de um subgrupo. As máquinas de costura, na famosa foto das cabeças, não sinalizam que Lampião e/ou seus comandados gostavam de relaxar, tirar o estresse dos dias difíceis no manejo da máquina de costura, mas que usavam tal ferramenta para fazer seus pertences como bornais e roupas, deixando claro que não discordo dos bordados, nem da habilidade dos mesmos nesta arte.
Por falar nas ditas máquinas de costura, nota-se duas delas na famosa foto das cabeças. Sabemos que a máquina de dona Guilhermina, mãe de Durval e de Pedro de Cândido foi levada para o coito por Mané Félix e Vicente – este ainda com vida – e que a mesma iria servir para Sila e Maria Bonita fazerem a roupa do sobrinho de Lampião que ali havia chegado com a finalidade de acompanhar o tio. Em momento algum se falou que quem iria “costurar” a roupa do rapazinho seria Lampião e, ainda, por que com uma máquina no coito, Maria Bonita (ou mesmo Lampião), mandou buscar a da senhora proprietária da fazenda Angico?
Ainda sobre as questões levantados pelo pesquisador Frederico ao falar do divórcio cultural entre o litoral e o sertão, concordo plenamente com ele. Houve realmente uma falha no processo de colonização, processo este que sentimos o ranço ainda nos dias de hoje. Porém, não digo que este fato não tenha reflexo no surgimento do cangaço, mas, em nada tem a ver com o cangaço da geração lampeônica, pois, sem sombra de dúvida, trata-se de uma insurgência nascida de uma particularidade estendendo-se para um campo mais amplo, porém não atingindo os ideais da divisão geopolítica e cultural. Seria forçoso demais pensar o contrário.
Quanto ao simplismo dos marxistas em considerar o cangaço filho exclusivo da luta de classes envolvendo coronéis e cangaceiros, também concordo que até então estes fenômenos, em especial o cangaço, era tratado de forma mais simplista. Existe uma complexidade bem mais faraônica envolvendo todo este período. Lampião era benquisto por alguns coronéis, pois se sabe que em meio à medição de força e poder entre os donos dos sertões nordestinos, Lampião foi um veículo utilizado por uns em desfavor de outros. Claro, quando digo utilizado, não estou dizendo que Lampião foi um fantoche nas mãos deste ou daquele coronel, mas que todos ganhavam, porque no acerto entre Lampião e o coronel, cada um tinha como objetivo a satisfação dos seus intentos.
Dizer que: “... o cangaço sai à luz como uma espécie de conspiração tácita sertaneja, irmanando coronéis e cangaceiros na luta surda contra inimigo comum: o poder litorâneo, fonte de toda repressão”. Não é nem forçoso, mas é absurdo mesmo.
Controvérsias à parte, sabemos que realmente Lampião sabia manusear a máquina de costura, bem como bordar. Percebemos que atrás daquela fera, muitas vez insana, havia um indivíduo capaz de sutilezas como costurar, mesmo em um universo tão machista. Quanto a ser um sucesso ou não, bem, sabemos que trabalhar com oralidade é complicado, dada a subjetividade de conceitos e ao fato de a memória ser seletiva. Tanto é verdade que temos depoimentos de sobreviventes que caíram em total descrédito por conta do surrealismo em demasia.
Um exemplo claro de um depoimento deste é o de Barreira ao então pesquisador Frederico. Pelo visto, a memória dele é tão seletiva que esqueceu que Lampião tinha um feeling apurado, tanto que mesmo sem saber que ele seria um traidor execrável, já não gostava dele.
No mais, parabenizo os dois pesquisadores, por serem grandes mestres e nos darem um exemplo tão bom sobre um debate, donde se pode discordar do posicionamento do outro sendo respeitoso e sem perder a admiração mútua.
Sou uma admiradora dos dois mestres e muito tenho aprendido com ambos. Sou uma iniciante nesta seara tão complexa e, por vezes, tão árida de se transitar, mas não podemos e nem devemos desanimar, pois, se as veredas percorridas pelos cangaceiros e volantes não foram nada fáceis, não vamos querer um campo de rosas como terreno para pesquisar.
Se todos colaborassem de alguma forma para com as pesquisas, estaríamos muito mais avançados e não teríamos o que vez por outra temos. Pessoas que usam suas pesquisas como holofotes, sem se preocupar com o futuro do conhecimento, dada a imensidão de teses mirabolantes defendidas com objetivo único de serem mercadológicas.

(*) Escritora, pesquisadora. Licenciada em História pela Universidade Estadual do Ceará.

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