SBEC - Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço

domingo, 19 de abril de 2009

Roberto Carlos em Sumé

Daniel Duarte Pereira (*)
Hoje, 19 de abril de 2009, houve a comemoração do aniversário de 68 anos do Rei Roberto Carlos Braga, e, em especial, dos seus 50 anos de carreira. Ouvi programas especiais em pelo menos duas rádios da cidade e li em apenas um dos jornais que circula em Campina Grande uma reportagem comemorativa. Reportagem de meia página, mas uma homenagem mais do que devida.
Quem como eu que já embranqueceu as cãs, ou está em processo de “grisalhamento” já deve ter usado de pelo menos uma música entoada por Roberto para marcar uma passagem da vida. Passagem esta identificada por diferentes interpretações emocionais.
Ouvir Roberto na sua fase da década de 70, me transporta imediatamente para a minha pequenina Sumé, que hoje já não está tão pequenina assim. Cresceu como deve ter crescido a Cachoeiro do Itapemirim de Roberto.
Mas o que me faz recordar Roberto em Sumé se dá pelo fato de que ainda em tenra infância eu associei suas músicas a um estabelecimento comercial. Este estabelecimento era denominado Vênus Bar e pertencia ao comerciante Zé Barros, de saudosa memória. O nome Vênus Bar era apresentado em placa luminosa de um plástico conhecido como “baquelite”.
A associação a qual me refiro não se deu de forma aleatória. Primeiro, devo descrever o ambiente. Era um bar de duas portas de rolo largas. No espaço à direita de quem entrava ficava o bar propriamente dito. Com suas mesas de ferro com tampos de fórmica de cor tendendo ao lilás claro, um luxo para a época. A fórmica se estendia aos tampos dos tamboretes também em ferro e combinava em cor com alguns dos azulejos que revestiam parte das paredes, outro luxo para a época e que ainda existem, e por último com o balcão. Este, no melhor estilo de bar, era totalmente revestido em fórmica, de concepção inclinada com visores retangulares em vidro onde eram acondicionados os chocolates, chicletes, balas ou confeitos e toda uma sorte de miscelânea e guloseimas. Uma das que mais me chamava a atenção, e que ainda guardo saudoso as impressões nas minhas papilas gustativas, era um chocolate quadrado, espesso de nome Pilantra. Como era saboroso aquele chocolate!
Frente ao balcão, tamboretes altos em ferro e com tampos também em fórmica fechavam o conjunto de apoio aos freqüentadores. Por trás deste existia um refrigerador em madeira de lei e portas espelhadas com um radiador no cimo, sendo da marca SOCIC. Acho que por aquela época era o único da cidade.
Outro deleite dos freqüentadores era uma vetusta radiola que vem a se constituir o num dos pontos principais destes meus escritos. Já não guardo mais na retina seu formato e marca. E isto me impressiona, pois, na verdade, lembro outros componentes do bar, exceto o que mais me interessava. Na verdade, o que me interessava mesmo, não era o móvel e sim a função dele. Ficava sempre embevecido vendo aquele disco negro e luzidio sempre limpado com uma pequena almofada aveludada de duas faces. Aquela rotação parecia quase que hipnótica. Só vim me livrar mais desta hipnose quando passei a morar em Campina Grande onde desasnei de muitas coisas e conheci tecnologias alhures.
O Vênus Bar, além da radiola oferecia outra atração: os ônibus da Itapemirim. No segundo espaço do bar funcionava uma espécie de agência e sala de espera dos ônibus. Os dias de segunda-feira eram os mais movimentados em função da realização da feira livre que ainda hoje é um dos grandes atrativos e sustentáculo econômico do município. Pois bem, na minha molequice em Sumé, ou quando das minhas férias, escolhia sempre os ônibus que iam para o Rio ou São Paulo, nunca os que chegavam. Por um simples motivo: os ônibus que iam traziam sempre em estoque a mais, bolsas contendo refrescos e acondicionadas em caixas de isopor.
As bolsinhas continham ainda um pequeno tubo fino, oco e rígido para perfurá-las e poder se consumir o líquido. Era uma verdadeira “chuva”, na verdade chusma, de meninos que acompanhava o ônibus na ânsia de receber o refresco que predominava nos sabores uva ou morango. Tratava-se de cortesia da empresa para os passageiros e que nós nos assenhorávamos com a conivência dos motoristas, cobradores e do Sr. Zé Paulo, também de saudosa memória. Zé Paulo era o carregador oficial do bar/agência e durante muitos anos, ou décadas, carregou os sonhos e ilusões dos que iam e as desilusões dos que chegavam sem terem conquistado um lugar ao sol.
Nesta relação harmônica entre meninos, motoristas, cobradores e carregadores, existia uma mais importante ainda. Ao se aproximar o final do ano me parece que Zé Barros não descuidava de uma encomenda importante: o disco de Roberto Carlos. O transporte da encomenda pelos motoristas era tão bem elaborado que talvez três dias depois de lançado o disco em São Paulo ou Rio, ele já se encontrava em Sumé, sendo o Vênus Bar único detentor deste privilégio por vários dias. Daí em diante nem o disco nem a radiola tinham mais descanso. O bar passava a ter outro tipo de freqüentador: aquele que ia para ouvir as músicas, no intuito de decorá-las, simplesmente degustá-las, ou mesmo identificar alguma que coincidisse com o que lhe passava no coração por aquele momento: amores correspondidos ou não, final de relacionamento, comemoração, “roedeira”, etc. De modo que sempre o disco atendia a uma destas reivindicações.
Diuturnamente o disco era tocado em volume que abrangesse parte da rua. Todos que viviam ou passavam próximos ao bar aprendiam assim as canções. Começavam então as associações que “fulano não podia escutar tal música que ‘roía’ por fulana”. Ocorriam então as farras homéricas cujo epicentro se dava por ocasião da festa padroeira, que se comemora a oito de dezembro em devoção a N. Sª da Conceição. Roberto chegava assim em Sumé por intermédio do Vênus Bar que antecedia a todos e, dizem alguns, até mesmo a Campina Grande. Talvez por existir uma reserva de mercado junto aos motoristas e cobradores.
Roberto, natural de Cachoeiro do Itapemirim, chegava pela Viação Itapemirim. Sem muita pompa, mas com o seu lugar reservado na radiola e nas mentes e corações de muitos sumeenses que nutriram amores e desenganos embalados nas suas canções. Hoje Roberto chega de outra forma. Chega pelas rádios e pela televisão. Menos ouvido, menos amado, talvez até esquecido. Exceto por aqueles que, independentemente da idade, tiveram o filme da existência com a trilha sonora das canções que ele fez para todos.
Não existe mais o Vênus Bar, a Itapemirim não passa mais por Sumé com os seus ônibus Ciferal. Hoje é a Viação Penha que transporta sonhadores e desiludidos em modernos e confortáveis veículos. O passado já não merece a lembrança de muitos, mas para mim estas recordações me matam.
Villa Nova da Rainha, aos dezenove dias do mez de abril do anno dous mil e nove da Graça do Nosso Senhor Jesus Cristo

(*) Do Instituto Histórico e Geográfico do Cariry e sócio da SBEC.

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