SBEC - Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Entrevista: Daniel Lins

Entrevista concedida à "Revista Preá" (José Correia), número 10, de jan/fev-2005.
Foto: Thiago Gaspar (Diário do Nordeste)
Em 1997 foi lançada, através da Editora AnnaBlume, a primeira edição do livro ‘LAMPIÃO, O HOMEM QUE AMAVA AS MULHERES – O IMAGINÁRIO DO CANGAÇO’.
Diferente dos demais trabalhos publicados sobre o tema quando aborda, sob vários aspectos, a questão da mulher no banditismo de uma maneira imparcial, objetiva, acadêmica, o professor doutor Daniel Lins expõe ao longo dos 26 capítulos, incluindo a vasta bibliografia, a presença e a influência da mulher no cotidiano do bando de Lampião e em outras situações da época. Maria Bonita, Sila, Enedina e tantas outras que viveram (ou morreram) em função do cangaço são abordadas e analisadas ao longo do livro.

“Meu filho, afaste-se das mulheres, elas deixam o guerreiro mole, os duros, não precisam de fêmeas. Para Sinhô Pereira, a única mulher a ser realmente respeitada e amada sem medida era a sua mãe. Santa, dedicada, conformada à lei do marido, ela deveria ser idolatrada, pois seu corpo, santificado pelo sentimento, eliminava a marca do pecado original, erro supremo de Eva. Ora, esse mal é também a consciência que significa emergência do sentimento. A consciência passa primeiro pela separação masculino/feminino, criando uma diferença potencial entre os dois sexos, entre o bem e o mal, entre Deus e a serpente, entre Deus e o diabo. Resultado de uma separação, de uma clivagem, de uma diferença no ser, a consciência é a perda do Um.
No começo era Adão: Homem-mulher, ele se bastava a si mesmo. É nesse sentido que a mulher era vista no cangaço – e ainda hoje, na sociedade masculina em geral – como portadora de sofrimento, luto, errância, insatisfação, infelicidade, divisão, enfraquecimento do tesão, do sexo aloprado, fratura da economia amorosa dos encontros viris.
Através de Eva, o homem conquistou a consciência, descobriu um pensamento, integrou a dualidade do bem e do mal, abandonando para sempre o estatuto de homem-natureza, homem-vegetal."
Doutor em Sociologia e Pós-doutor em Filosofia pela Sorbonne, psicanalista, Daniel Lins é professor do Departamento de Ciências Sociais da UFCE. É autor de mais de vinte livros, entre outros: “Lampião o homem que amava as mulheres”, “La Passion Selon Lampião”, “Antonin Artaud: O Artesão do Corpo sem Órgãos”, “Cultura e Subjetividades – Saberes Nômades”, “Sila: Uma Cangaceira no Divã”.

MAIS ALGUNS PONTOS DE VISTA DE DANIEL LINS SOBRE O CANGAÇO

José Correia – O seu livro, ‘Lampião - O homem que amava as mulheres’, evidencia-se na bibliografia do cangaço como um trabalho acadêmico que utiliza a metodologia científica para discorrer sobre um assunto tão característico do imaginário popular nordestino. Quais os elementos que lhe nortearam para separar ou destacar o ‘acadêmico’ desse ‘imaginário’, que permeia ora a coletividade, ora alguns escritores?

Daniel Lins – Primeira coisa: não separo o “imaginário” do “acadêmico”, ou histórico, mesmo porque não considero que haja separação nem dualidade. A própria história é um imenso imaginário. O mundo é primeiro sonhado como imaginário e só depois é estruturado como histórico ou acadêmico. O que tentei fazer, diante do vazio de pesquisas acadêmicas acerca de Lampião, em particular, e do cangaço em geral, foi mostrar como era possível, para além do “racismo de classe” (Bourdieu) da academia, salvo honrosas exceções, trabalhar o cangaço e Lampião segundo uma metodologia séria, numa linguagem rigorosa, sem matar a poesia da personagem nem a força do imaginário popular que criou, à sua maneira, uma constelação de lendas e contos extraordinários, cotidianos, a respeito de Lampião e do cangaço. De fato, o cangaço pouco interessou à Academia ou à história. Visto como “cultura do pobre”, a história do cangaço ficou relegada a curiosos, jornalistas, autodidatas e nostálgicos de “um tempo que não volta mais”, um tempo mítico. Escreve-se sobre o cangaço, mas não com, o que vale dizer que, em geral, não se escreve com, mas contra: é a escrita do julgamento, muitas vezes improvisada, pobre e sem pensamento. O resultado, salvo raras exceções, é antes negativo. Sem formação nem metodologia, guiados ora por um amor excessivo à personagem, ora por um ódio beirando o racismo, os “donos” da memória do cangaço terminaram por exilar o cangaço na sua própria diferença. Eis por que, enquanto diferença, reduzida ao folclore, o cangaço não tem dono. Assemelha-se mais à casa de Noca: todo mundo mete sua colher. O resultado, às vezes, é trágico, basta ver a quantidade de besteiras escritas nos jornais e nos “livros” acerca de Lampião e, muitas vezes por aqueles que o “admiram”! É como se dissertar sobre o cangaço não exigisse pesquisas e estudos aprofundados. É como futebol, todo mundo é técnico. Claro, não se pode deixar de ver nisso tudo um aspecto ideológico. O cangaço no Brasil ficou, mais uma vez preso, nas mãos de uma direita não esclarecida, mesmo se, às vezes, apaixonada pelo assunto. Durante a exposição da comemoração dos 500 anos da “Descoberta do Brasil” (sic), o cangaço foi representado. Na lista de estudos repertoriados, a pesquisa séria, os estudos acadêmicos (poucos, mas importantes) e a bibliografia estrangeira, inclusive de autores célebres como Eric Hobsbawn, foi ignorada, rechaçada. A memória foi privatizada, deu-se as costas aos mais importantes estudiosos do cangaço do ocidente. Lamentável. Isto é a maneira brasileira de fazer cultura. Trabalha-se em família, em clãs. Ignora-se a pesquisa e os pesquisadores. Quanta alienação no Brasil, país dos coitadinhos!

José Correia – Muitos autores, assim como em depoimentos de cangaceiros como o do Sinhô Pereira, declararam que a entrada da mulher no bando de Lampião culminaria na sua derrocada. Podemos dizer que Lampião estava além do seu tempo e do seu reinado?

Daniel Lins – Que eu saiba Lampião foi o único a aceitar mulheres no bando. Ele provocou uma verdadeira crise, não só em relação ao Sinhô Pereira, mas ao Padre Cícero, que sempre foi contra a entrada das mulheres no cangaço. Lampião inovou e o machismo nordestino, em particular, e brasileiro em geral, uma vez mais, teve que aceitar a vontade do Capitão. Ao invés de ver nesta atitude uma “decadência” (por que os machos têm tanto medo das mulheres?), a antropologia aponta, sobretudo, para uma modernidade de Lampião oposta ao discurso oficial (“bruto, matador, analfabeto” etc) e que deveria ser analisada de modo mais aprofundado. Uma interpretação psicanalítica (cf. nosso livro “Lampião o homem que amava as mulheres”) desvela os medos infantis de homens (volantes, curiosos do cangaço etc) amedrontados pelas mulheres e fixados em Lampião como um puro objeto de seus desejos. Daí por que alguns acusaram Lampião de ter traído o cangaço ao aceitar as mulheres nos bandos. Nem Freud explica!

José Correia – Lampião e o seu bando obtiveram, ao longo de sua história, inúmeras vitórias e derrotas. No teatro da invasão de Mossoró ele escolheu a estratégia de ‘bater em retirada’, mediante as condições desfavoráveis apresentadas naquela ocasião. O imaginário popular e alguns escritores atribuem à coragem dos mossoroenses e até à proteção divina para justificar a vitória sobre o cangaceiro mais temido. Como o senhor analisa a estratégia escolhida pelo Capitão?

Daniel Lins – Esta foi sem dúvida a grande falha estratégica de Lampião. Ele pisou na bola. Deixou-se hipnotizar pelo narcisismo exacerbado e pelo desejo niilista de poder. Ouviu quem não devia ouvir. Faltou sangue frio, maturidade, coisas de jovem. Finalmente, o cangaço foi um movimento jovem! Mas, no final, terminou sendo o vitorioso no imaginário contemporâneo de mossoroenses que fizeram dele seu herói: Museu do Cangaço, túmulo de “santo” Jararaca. O “bandido” de ontem tornou-se o herói maior de hoje! Do folclore ao turismo e às letras. Lampião, como todo herói, mesmo quando perde, ganha. Hoje é um cartão de visita de Mossoró! A família de Lampião – sobretudo Expedita, filha de Lampião e Maria Bonita – deveria cobrar direitos pelo uso de imagem. Pena que em matéria de turismo e de memória, os mossoroenses, através das “autoridades locais”, pisaram também direitinho na bola: as marcas das balas nas paredes da Igreja, memória tatuada da passagem de Lampião em Mossoró, foram apagadas. Taparam os buracos das balas e apagaram a memória. O templo parece mais o cemitério da memória. Sem as marcas das balas, a igreja voltou a ser o que sempre foi: insignificância. Sua história era a história das balas. Sem as marcas das balas, a igrejinha chora hoje de solidão. Ninguém pára mais para olhar os buracos das balas nas paredes. A ignorância ganhou e a memória foi uma vez mais, velada. Ainda bem que nenhum desvairado teve ainda a idéia de cobrir o túmulo de Jararaca.

José Correia – Na sua obra ‘Lampião – O homem que amava as mulheres’ observa-se uma ampla e rica bibliografia. Qual a análise que o senhor faz sobre o que já foi escrito e o que ainda pode ser escrito sobre o cangaço?

Daniel Lins – Como já aludimos, no Brasil a escassez de estudos sobre o cangaço faz até pena! Nas próprias Academias, o silêncio é quase total. A história, nem se fala. Escreve-se sobre o Ceará, por exemplo, nos anos 20-30 e não se diz uma linha sobre Lampião, muito menos acerca de sua amizade privilegiada com o Padre Cícero e sua ida a Juazeiro para ajudar na luta contra Prestes, durante este período. Mesmo os curiosos do cangaço, parecem mais calmos, se calam pouco a pouco. Aqui e ali uma reedição sem novidade é feita. A coisa morre por aí, mas o cangaço, apesar desse mutismo, ocupa ainda o imaginário brasileiro – e como! – para além da denegação e do desprezo de uma elite iletrada ou pouco letrada, avessa à “cultura do pobre”, basta ver a presença de Lampião e Maria Bonita no teatro, na moda, na dança e, por vezes, ainda no cinema etc. Enquanto isso, no estrangeiro – França, Itália, Espanha, Alemanha, Estados Unidos e Canadá – em dez anos, seis mestrados e cinco teses de doutorado foram escritos sobre Lampião e o cangaço. A última (Sorbonne, Paris 2002) foi premiada e publicada, alcançando um enorme sucesso. Meu livro, “La Passion Selon Lampião Le Roi des Cangaceiros”, (Editora Seuil) vendeu em dez anos mais de 30 mil exemplares, em edição de bolso. Lampião e Maria Bonita estão mortos? Viva Lampião! Viva Maria Bonita!
Daniel Soares Lins é sócio da SBEC.

2 comentários:

Anônimo disse...

adorei a entrevista, tem um quê afirmativo/desafiador e é de uma agilidade que serpenteia, pois revela o, já sabido, desprezo da tradicional elite avessa à "cultura pobre", enquanto que evidencia tensões e paradoxos calados pelos que não podem sair da perspectiva maniqueísta, sejam eles "bem" intencionados ou não. Parabéns ao entrevistador e ao entrevistado :) Anna Amélia de Faria

Anônimo disse...

adorei a entrevista, tem um quê afirmativo/desafiador e é de uma agilidade que serpenteia, pois revela o, já sabido, desprezo da tradicional elite avessa à "cultura pobre", enquanto que evidencia tensões e paradoxos calados pelos que não podem sair da perspectiva maniqueísta, sejam eles "bem" intencionados ou não. Parabéns ao entrevistador e ao entrevistado :) Anna Amélia de Faria

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