SBEC - Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Um Presépio Diferente

Daniel Duarte Pereira (*)
Arte: "Presépio Brasileiro", de Emanoel Cândido do Amaral (**), 1996.
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Fazia já algum tempo que o carro-de-bois deixara de emitir o seu gemido monótono. Jazia agora, um tanto esquecido, à sombra de vetusto juazeiro, rodeado por alguns mandacarus e coroas-de-frade. O Vaqueiro José após uma ampla viagem pelas caatingas cinzentas do mês de dezembro, donde não houvera ainda a chuva dos cajus, elegera como local de parada aquela árvore, que se destacava na paisagem, para arranchar a família. Família pequena, só ele e a Beata Maria. Não sabiam ambos, que uma cena de rara beleza estava por se descortinar, após o ocaso vermelho-sangue que ainda denunciava a estação seca. Pensava agora no dia de Santa Luzia e na adivinhação das pedras de sal que fora positiva com as chuvas se prenunciando para janeiro.
Nos seus poucos teréns, aguardavam as sementes para o próximo roçado. O seu lado vaqueiro não desmerecia o lado agricultor. Sabia exercer ambas as profissões com destreza. Era pau para toda obra. Outro ofício que exercia com perfeição era o de carpinteiro. Era de seu feitio o carro-de-bois, novo, reluzente, ainda "amansando". Cortara as madeiras pela lua e nas horas vagas serrara e aplainara. Fizera a mesa, as chedas, as rodas, os fueiros, o eixo, a canga e a "cantadeira" de pinhão com breu, sebo e carvão, tudo certinho tudo bonitinho. Parece que estava adivinhando que o seu patrão iria lhe demitir e iria ter que fazer aquela longa viagem.
Perdido nos seus pensamentos e animado com a adivinhação, e com a promessa de emprego em fazenda que distanciava ainda cinco léguas de beiço donde se encontravam ele e Maria, foi despertado por esta que anunciou um certo desconforto visto o estirão da viagem e por encontrar-se em estado "interessante".
- José, parece que de hoje não passa!
O pobre José, agora nos inícios da profissão de pai, viu-se em desespero. Já tinha perscrutado o horizonte e não tinha visto, nem ouvido, viv'alma. Nada! Apenas o silêncio, quebrado pelos cantos dos grilos e a escuridão aqui e acolá entremeada pelo piscar dos vaga-lumes. Depressa, acendeu o candeeiro e fazendo um fogo rápido foi se lembrando dos nascimentos já vivenciados, em parte, por ele. Sabia que precisava de água quente, faca ou tesoura bem amolada e passada no fogo, panos limpos etc. Rebuscou nos baús de cedro e achou o modesto enxoval ganhado de presente. Retirou dali um ou dois lençóis brancos e aguardou.
A pobre Maria, mãe de primeira viagem, estava num estado mais tranqüilo. Curiosamente, antes de iniciarem a viagem, um Carregador de Água desconhecido havia lhe dito que algo de bom iria acontecer na vida deles e que o filho desejado iria nascer e viver na simplicidade, mas que Grande seria a Sua Existência.
- Esquisito aquele vendedor de água! Disse isso e desapareceu como um anjo. Também, por aquelas paragens o vendedor de água era mesmo um anjo que trazia água doce, limpa e friinha em ancoretas de imburana que deixavam um sabor gostoso na água.
Os tantos sonhos que Maria tivera prenunciando o filho a deixavam calma. Com paciência esperou. Não estavam ali as suas amigas, nem Sá Marica Parteira para ajudá-la. De repente, uma estrela, dantes miudinha, começou a se aproximar e iluminar o local. Bem mais do que o próprio candeeiro. Calma estava e calma ficou. Já havia presenciado e ajudado em tantos nascimentos. Agora era a sua vez.
José é que de forma pudica tinha se distanciado alguns passos deixando, entretanto, todo o material necessário para o nascimento. O ar, impregnado do odor das flores de pereiro e do alecrim-de-serrote, parecia também se preparar para o desabrochar de uma nova vida.
Súbito, um choro! José acorreu até Maria e com a fisionomia ainda tensa perguntou se tudo estava bem. Repousava agora no colo da mãe uma bela criança do sexo masculino.
Neste instante a estrela brilhou mais forte e foi aí que José e Maria, avistaram vultos que se moviam em direção a eles: primeiro foram os animais mais conhecidos: uma vaca, uma cabra, uma ovelha e um galo. Depois, os animais do mato como a raposa, o gato-do-mato e o tatu. Esses serezinhos, ditos brutos, vinham prestar uma espécie de homenagem ao recém-nascido. Em silêncio se postaram ao redor do menininho, agora já num improviso de berço: uma gamela de mulungu.
Outros vultos começaram a surgir e aí, pelo brilho da estrela, pôde-se vislumbrar um índio ofertando um peixe, um agricultor ofertando lã de algodão e um negro ofertando as suas correntes quebradas.
- O Peixe fruto das águas, o Algodão fruto da terra e as Correntes quebradas fruto da liberdade. Assim disseram a José e Maria, oferecendo tudo ao recém-nascido. Diziam se chamar Caturité, o Índio; Zumbi, o Negro e João Coloia, o Agricultor.
- Interessantes aqueles três. Apesar das cores e miscigenações eram todos parecidos como se fossem irmãos! Assim pensou José.
De repente, outras pessoas começaram a chegar. Primeiro um beato que decerto andava a salvar almas ali por perto. Chamava-se Pai Mateus. Depois apareceu um cangaceiro de nome Jesuíno e por último uma rendeira de nome Mocinha.
O beato com as sua rezas, abençoou a criança que a tudo parecia assistir com interesse com os seus olhinhos de recém-nascido. Ofertou-A ao criador pedindo que ali estivesse em carne o Cordeiro que seria imolado em nome da redenção da humanidade. Já o cangaceiro, agora com um mínimo de armas, viera oferecer segurança a família, pois ali andavam pessoas más que poderiam roubar, ou até mesmo, matar a criancinha. E a rendeira, enquanto conversava, deslizava agilmente os seus dedos pelos bilros da almofada fazendo os primeiros cueiros com o algodão ofertado pelo agricultor.
Por último, chegou o Carregador de Água, silencioso, iluminado! Ofereceu a Maria e a José o único presente que poderia dar: água. Água, símbolo da vida. Da vida que ressurge a cada estiada nos sertões nordestinos. Chamava-se Gabriel.
Estava, portanto, completa a cena. Aquela vida surgida nas secas caatingas parecia fadada não a reverdecê-las, mas sim a todo o mundo. A toda a humanidade. Reverdecer pela crença no Criador, pela esperança de dias melhores pautados pela paz.
A paz, que José e Maria, as pessoas e os animais encontraram naquela noite de dezembro em algum lugar perdido no cinzento dos nossos corações.
Villa Nova da Rainha, aos Dezoito Dias do Mez de Dezembro do Anno Dous Mil e Oito da Graça do Nosso Senhor Jesus Cristo.

OBS: Este Presépio está em exposição no Museu Interativo do Semi-àrido (MISA) da UFCG/PEASA, Campina Grande (PB). Fica por trás do DART e da Creche, com acesso principal pelo portão de trás do Campus (3310-1591). As palavras em azul constituem os personagens e peças do Presépio.
(*) Agrônomo, Professor Universitário, sócio da SBEC.
(**) Sócio da SBEC.

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