SBEC - Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Encontro Inadiável

Daniel Duarte Pereira (*)
Marcaram o encontro debaixo da velha aroeira da serra. Árvore mais do que secular, como atestavam o seu porte e diâmetro. Naquele dia, a velha árvore estava despida de folhas, mas ajaezada de pequenos frutos assemelhando-se, nos cachos, a penduricalhos de pequenas estrelas. Servia de divisa na cumeeira da serra desde tempos imemoriais tendo, até então, escapado ao “machado bronco”.
Um deles, como é próprio da juventude, subiu de forma lépida sem se preocupar com o aclive, um tanto íngreme, nem com os pequenos obstáculos na forma de pedras, troncos caídos, raízes etc. Chegou lá em cima um tanto esbaforido, as faces coradas, alegre, vivaz. Bem trajado, bem barbeado, sapatos cintilantes, perfume da moda, mal sabia o que teria pela frente.
O outro, idoso, castigado pelo tempo, cansado das vicissitudes da vida, alquebrado pelas desilusões, mas ainda certo da realização de metas dantes sonhadas, subiu um tanto trôpego, vista curta, passos pequenos, quase “engomando”. Ombros caídos, cabelos encanecidos, barba longa, vestes e sapatos rotos. De perfume, apenas o odor da mataria que teimava em atrapalhá-lo na sua, já tão dura, subida. Vez por outra, parava para tomar um fôlego e aproveitava para olhar para trás e para baixo.
Como tudo tinha mudado em tão pouco tempo! Onde estava aquela quixabeira das margens do riacho? Da craibeira restavam, ainda, resquícios do ouro da florada recente. Aquele toco enegrecido, era tudo o que restava da frondosa oiticica que sombreava o poço no pequeno riacho, agora seco e aterrado. O juazeiro mutilado na sua copa para atender a voracidade dos animais, apresentava vários ferimentos no tronco. Alguém o raspara em busca das suas propriedades medicinais e, ou, cosméticas.
O que fora feito daquela pequena matinha rica em imburanas-de-cheiro, pereiros, angicos, jucás, paus d’arco roxos, baraúnas, juremas pretas, mofumbos, macambiras, caroás, xiquexiques, facheiros, mandacarus, palmatórias, coroas de frade, mororós, imburanas-de-espinho, barrigudas, icós, malvas, moleques-duros, quebra-facas, marmeleiros? Onde estavam os ninhos dos beija-flores, tão protegidos pelas urtigas e xiquexiques? Cadê as faveleiras, abrigos das casacas-de-couro, rolinhas e juritis? E aquela catingueira “ocada” que escondia uma cascavel com mais de vinte “rusgas”?
Que fora feito dos preás, mocós, pebas, “verdadeiros”, raposas, gatos do mato, furões, carcarás, tacacás, camaleões, papa-ventos, concrizes, cancões, xexéus, galos-de-campina e seriemas? Até mesmo as cigarras já não cantavam mais!
Como uma paisagem mudara tanto em tão pouco tempo? Substituindo toda aquela diversidade via-se agora, carreiras e mais carreiras de uma planta para ele desconhecida. Havia uma rigorosa disciplina naquela distribuição. Parecia mais um exército invasor que cobrava o seu tributo aos vencidos. Além dos despojos de guerra – lenha, carvão, estacas, mourões, varas, estacotes – notava-se claramente a “escravização” da terra e o sugar do seu sangue. Aquela terra outrora vermelha, corada, gorda, fértil, apresentava-se agora anêmica, gretada, endurecida.
Subiu mais um pouco e novamente parou. Lembrou-se que no poço onde parara lá embaixo para dessendentar-se, o acesso à água estava mais difícil. A água mais profunda, mais salobra. O que fora feito daquela água cristalina, ao alcance da mão, dulcíssima? O que fora feito daquela bondosa senhora, do seu marido, da legião de filhos e que rezava contrita diante de uma estampa do Coração de Jesus, por ocasião da sua passagem em época passada, na humilde, mas asseada, casinha de taipa ao lado de frondoso imbuzeiro? Passara por lá, vira apenas uma tapera com currais arruinados. De vivos apenas os cupins no seu lento decompor.
Finalmente, chegou no cimo da serra! O outro, já impaciente, trajava o branco assim como ele. Mas como destoavam. Aquele, vestindo calça tipo jeans e camisa pólo de um branco resplandecente, última moda, sem nenhum vinco ou amarrotamento, sapatos de tênis confortáveis, relógio doirado, celular de funções variadas, cabelo bem aparado. Usava, ainda, reluzente aparelho nos dentes.
Este, trajando camisa e calça de um branco amarelecido. Roupas limpas, porém denunciando uma miríade de rasgões e manchões costurados às pressas. Sapatos de boa marca, porém foscos. Na algibeira, pequeno relógio de corda, um luxo que ainda teimava em possuir. O seu sorriso, cansado, denunciava falhas e nas faces vincos profundos pareciam competir com os da terra ressequida lá embaixo.
Apertaram-se as mãos! Um de mãos lisas e bem tratadas, o outro de mãos nodosas e calosas. Nem pareciam parentes, tão díspares estavam no trajar e na aparência. Fosse só isso, tudo bem! Com alguns minutos de conversa, verificaram destoar na forma de ver o mundo. Um, mais comedido pela maturidade e pelo sofrimento, procurava mostrar que a pressa no tirar da natureza, no ir e vir diário, estavam desabitando o campo e desumanizando o mundo. O outro, discordando frontalmente citava os milagres da indústria, da medicina e anunciava que o homem estava cansado de “coadjuvar” a Deus e que agora passaria a ser o ator principal. Tinha conhecimento suficiente para isso!
Entretidos nesta palestra, não notaram o adiantado da noite e eis que de súbito, como num movimento ensaiado, consultaram os seus relógios e verificaram que faltavam poucos segundos para o grande momento. O mais velho, lembrou-se dos ensinamentos recebidos no ano anterior e de como desdenhara daquele amável ancião que teimava em lhe alertar. Achou-o, naquele dia, ultrapassado e porque não dizer, caduco!
Hoje, era ele quem estava sendo desdenhado, e com um agravante, sentia-se culpado pela matinha que fora derrubada, pela água que escasseava, pela família que migrara, pelos animais que sumiram, pela sufocação do mundo envolto em fumaça. Tivera todo o tempo do mundo para evitar tudo isto. Mas ficara embevecido com as festas carnavalescas, joaninas e natalinas. Pouco prestara atenção à Semana Santa, ao Nascimento de Cristo, aos dias 28 de março, 05 de junho, 21 de setembro e 04 de outubro. Comemorara cada carro fabricado com regozijo, pois estava gerando emprego para dezenas de famílias. Aceitara mais uma usina atômica, mais uma indústria sem certificação ambiental, mais uma madeireira clandestina, mais um complexo imobiliário. Meus Deus! Como deixara passar tudo aquilo?
Agora, observava gestos e semblantes do jovem que estava na sua frente. Como dizer tudo isso para ele? Como alertá-lo para o que viria? Como contribuir para que o mesmo não tropeçasse tanto? Verificou, alarmado, que não tinha como fazer mais isto, pela impetuosidade do jovem e pelo tempo que restava. Era tarde, muito tarde!
Mais uma vez, o mundo seria prejudicado pelo excesso de conjecturas e pela pobreza de decisões. Ele, com toda a experiência que havia adquirido, não tivera tempo de executar nada. O outro já agora não o ouvia mais! Nos céus das cidades circunvizinhas, foguetões começaram a iluminar a noite. Ouviam-se agora ruídos de músicas e aqui e acolá trechos de felicitações. E foi assim, que o Ano Velho se despediu do Ano Novo!

(*) Agrônomo, Professor Universitário, Sócio da SBEC

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