SBEC - Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

A Nova Onda no Cangaço

Honório de Medeiros (*)
Arte: Jô Oliveira
Em recente entrevista concedida ao escritor Franklin Jorge, depois gentilmente transcrita em seu jornal eletrônico por Jânio Rêgo, defendi um estudo do fenômeno do cangaço firmado em paradigmas diferentes daqueles que, ainda hoje, são notoriamente utilizados na produção pré-científica em relação ao tema.
Descrevi o que seria essa nova “onda”, assim batizada por força da falta de uma expressão melhor, e calculadamente inspirada, a expressão, na obra homônima de Alvin Toffler, guru americano na moda em meados da segunda metade do século passado, “expert” em projetar o futuro.

Os paradigmas são simples e poucos: utilização do método científico na pesquisa do imenso acervo de dados existentes acerca do cangaço, hoje, e utilização da teoria da evolução de Darwin, na análise do material disponibilizado pela pesquisa.

Entre os argumentos elencados na defesa de minha tese consta uma constatação óbvia: hoje quase não temos fontes primárias a serem pesquisadas, e as poucas restantes – personagens que participaram diretamente do ciclo do cangaço – delas já se extraiu o possível e o impossível. Ressalvei a possibilidade de ocorrer, extraordinariamente, o que aconteceu em relação a Plácido de Castro, ou seja, a descoberta de papéis de um lugar-tenente seu, em um lugar remoto do interior do Rio Grande do Sul, alusivos ao período no qual o gaúcho lutou pelo Acre. Se acontecer algo assim, como por exemplo, a descoberta de um diário perdido do Coronel Floro Bartolomeu, será uma verdadeira festa para os pesquisadores do cangaço e coronelismo, mas, com certeza, algo absolutamente inesperado.

Um exemplo utilizado para explicar o que seria a “nova onda” em relação ao cangaço foi o da teoria do “escudo ético”, de Frederico Pernambucano de Mello, com certeza um dos nossos mais importantes e originais pesquisadores. Segundo essa teoria, calcada em metodologia científica – uma conjectura, portanto, exposta à refutação – os cangaceiros construíam um “escudo ético” para justificar sua senda criminosa: eles assim agiriam (1) como conseqüência de um sentimento de justiça oposto à injustiça de ações contra si ou sua família cometidas, tudo conforme um ancestral código de conduta tipicamente sertanejo.

Podemos não concordar com a teoria de Frederico Pernambucano, mas não podemos negar que ela resulta do tratamento científico dado ao resultado – os “dados brutos” – obtido com as pesquisas realizadas durante a “onda antiga”, na qual eram coletadas informações e repassadas, a grande maioria das vezes, sem qualquer checagem quanto aos fatos arrolados, em obras nitidamente amadorísticas quanto à composição, edição, conteúdo e, por que não, até mesmo venda. Ressalvo, obviamente, a literatura de cordel – uma outra realidade.

Quanto ao darwinismo, penso em sua utilização no âmbito das ciências sociais como a grande ruptura com os modelos anteriores, tais como o marxismo e o funcionalismo americano, o estruturalismo francês e Weber. O darwinismo é uma macro-visão da realidade viva, incluindo, aí, o campo social, a única a resistir à virada do milênio, esse mesmo milênio que deu contornos bem mais limitados ao pensamento de Freud e Marx. Darwin é o grande sobrevivente. Evidentemente quando abordo o darwinismo rechaço o assim chamado “darwinismo social”, que nem é darwinismo, nem é social, e somente existe hoje no pensamento de quem, realmente, não conhece a obra de Darwin. Criticar o darwinismo a partir do “darwinismo social” é, mais ou menos, como criticar a democracia pelos desvios que ela possibilita, tal como o pensamento de direita cínica e o de esquerda raivoso. Típica do desconhecimento acerca do darwinismo é uma questão que me foi formulada por um dos comentadores da entrevista: “a lei do mais forte, então, justificaria socialmente o cangaço?” A ciência não justifica nada, caro cidadão; a ciência explica.

Uma “nova onda” em relação ao cangaço permitiria, por exemplo, demonstrar por que Lucas da Feira não foi cangaceiro. Aliás, a filosofia pode fazer isso: se Lampião é o paradigma, basta compararmos Lucas com ele e nos indagar se eram semelhantes. Obviamente não. Nem todo bandido rural era cangaceiro. Como permite rir da afirmação feita por outro comentador de que eu nego “aos integrantes das camadas populares a capacidade de elaborar estratégias de vida por meio de operações intelectuais...” Nunca tinha visto nada tão disparatado. A lei da evolução confirma que desde a ameba, até o Homem, ou seja, qualquer ser vivo, sobrevive graças à capacidade de elaborar estratégias de sobrevivência. Está em Karl Popper, de quem recomendo a leitura.Está em Richard Dawkins. Está em Daniel Dennet. Está em muitos. A habilidade “política” de Lampião – penso que o comentarista quer dizer habilidade guerreira – é algo concreto: não fosse assim ele não teria sido quem foi. Entretanto devemos colocar essa habilidade em seu contexto específico, qual seja, o jogo de poder inerente ao coronelismo que permitiu sua sobrevivência durante tantos anos no Sertão inóspito.

Enfim, à guisa de conclusão, confirmo que nada é tão interessante quanto essas polêmicas que nos permitem aprofundar e redimensionar nossas próprias opiniões. Não por outra razão elas me interessam vivamente. Cresço com elas. Crescemos todos. Ao contrário dos que gostam de ser contrariados, eu me perfilo com D. Hélder Câmara e seu “standard”: “me enriquece quem de mim discorda”. Nada tão belo. Nada tão correto, do ponto de vista epistemológico. Nada tão sensato.
(1) Tese bastante explorada pelo Coronel Antônio Gurgel quando em cativeiro para resgate, no intuito de agradar Lampião.
(*) Escritor, Professor e Advogado no Rio Grande do Norte. Associado da SBEC.
Leia a entrevista de Honório de Medeiros ao escritor Franklin Jorge AQUI.

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